Por uma comunicação contra-hegemônica: uma proposição desde Paulo Freire, César Bolaño e Álvaro Vieira Pinto
Towards a counter-hegemonic communication: a proposition from Paulo Freire, César Bolaño and Álvaro Vieira Pinto
Para una comunicación contrahegemónica: una propuesta desde Paulo Freire, César Bolaño y Álvaro Vieira Pinto
—
Helena MARTINS
Brasil
Universidade Federal do Ceará
Orcid: http://orcid.org/0000-0002-3210-4969
helena.martins@ufc.br
Marina POLO
Portugal
Universidade do Minho
Oricd: https://orcid.org/0000-0003-4536-0539
marina@marinapolo.net
Chasqui. Revista Latinoamericana de Comunicación
N.º 150, agosto - noviembre 2022 (Sección Monográfico, pp. 79-96)
ISSN 1390-1079 / e-ISSN 1390-924X
Ecuador: CIESPAL
Recibido: 01-06-2022 / Aprobado: 11-08-2022 / Publicado: 21-08-2022
Resumo
O cenário de concentração econômica e de poder em torno das plataformas digitais e sua relação com a crise sistêmica do capitalismo demandam uma análise crítica da forma e do conteúdo da comunicação. A fim de contribuir com tal discussão, o texto analisa as contribuições de Paulo Freire, Álvaro Vieira Pinto e César Bolaño, combinando a crítica cultural, a filosofia da tecnologia e a Economia Política da Comunicação. A ênfase de cada um dos autores recai, especificamente, sobre cultura, tecnologia e comunicação, questões centrais para uma compreensão dialética do problema da comunicação hoje. Advogamos uma práxis que combine usos e visão estratégica com base na crítica à mercantilização e na defesa de uma comunicação contra-hegemônica, orientada por uma perspectiva pública.
Palavras-chave: economia política da comunicação, plataformas digitais, comunicação, tecnologia, forma social.
Abstract
The scenario of economic and power concentration around digital platforms and its relation to the systemic crisis of capitalism demand a critical analysis of the form and content of communication. In order to contribute to this discussion, the text analyzes the contributions of Paulo Freire, Álvaro Vieira Pinto, and César Bolaño, combining cultural critique, philosophy of technology, and the Political Economy of Communication. The emphasis of each of the authors is specifically on culture, technology, and communication, central issues for a dialectical understanding of the problem of communication today. We advocate a praxis that combines uses and strategic vision based on the critique of commodification and the defense of a counter-hegemonic communication, guided by a public perspective.
Keywords: political economy of communication, digital platforms, communication, technology, social form.
Resumen
El escenario de concentración económica y de poder en torno a las plataformas digitales y su relación con la crisis sistémica del capitalismo exigen un análisis crítico de la forma y el contenido de la comunicación. Para contribuir a esta discusión, el texto analiza las aportaciones de Paulo Freire, Álvaro Vieira Pinto y César Bolaño, combinando la crítica cultural, la filosofía de la tecnología y la Economía Política de la Comunicación. El énfasis de cada uno de los autores se centra específicamente en la cultura, la tecnología y la comunicación, temas centrales para una comprensión dialéctica del problema de la comunicación en la actualidad. Abogamos por una praxis que combine usos y visión estratégica basada en la crítica a la mercantilización y la defensa de una comunicación contrahegemónica guiada por una perspectiva pública.
Palabras clave: economía política de la comunicación, plataformas digitales, comunicación, tecnología, forma social.
Introdução
A nova ordem mundial da informação e da comunicação que emergiu da reestruturação do capitalismo, desde os anos 1970, baseada nas tecnologias da informação e da comunicação, materializa-se hoje em um cenário de concentração em torno de corporações transnacionais, as plataformas digitais, que permitem ampla homogeneização cultural, práticas de vigilância, uso de dados para manipulação de comportamentos, desinformação, precarização do trabalho, entre outros problemas que têm sido percebidos como ameaças sistêmicas.
Por outro lado, embora alijados da propriedade dos meios de comunicação, diversos sujeitos subalternizados buscam ocupar, criar, dar visibilidade às suas visões de mundo e disputar os rumos da organização social. É o caso da intervenção em redes sociais, utilizadas para a projeção de vozes historicamente invisibilizadas e para a articulação de resistências. Tais práticas se dão em espaços que não são neutros e que participam da arquitetura hegemônica, daí que as contradições que marcam a informação e a comunicação no capitalismo são, uma vez mais, vivenciadas, o que nos exige olhar as estruturas e processos sociais de forma dialética.
Desde os anos 1980, as possibilidades associadas ao que seria um novo cenário comunicacional ensejaram práticas e leituras que advogaram a superação do controle hegemônico dos meios de comunicação. O deslocamento dos estudos do campo da Comunicação para os usos e apropriações sociais dos conteúdos foi desenvolvido a ponto de confirmar uma preocupação manifestada, inclusive, por Martín-Barbero (1995), que tratou como risco o possível desligamento dos estudos de recepção dos processos de produção e do poder ideológico dos meios. Tal fragmentação se deu em um momento em que os vínculos entre o modo de acumulação sob dominância financeira e tecnologias da informação e da comunicação aumentavam (Lopes, 2008). Época marcada ainda pela redução do debate político após a desintegração do bloco soviético, no início dos anos 1990.
Uma nova mirada crítica ganha lastro no momento atual, pois “a crise mundial promove e envolve dentro de si a crise da ilusão que identifica progresso e capitalismo”, afirma Arizmendi (2012, p. 7), que aponta, ao contrário das visões acríticas, o par progresso e devastação como constituintes do século XXI. Tal situação evidencia a necessidade de pensar as práticas e horizontes estratégicos das resistências. Para contribuir com esse esforço, neste texto questionamos a forma social da comunicação hoje; buscamos compreender a filosofia da tecnologia e avançamos para a defesa de uma comunicação contra-hegemônica e orientada, desde seus fundamentos, por uma perspectiva pública.
Partimos do diálogo com as contribuições de Paulo Freire, Álvaro Vieira Pinto e César Bolaño. A ênfase de cada um dos autores recai, respectivamente, sobre cultura, tecnologia e comunicação, questões centrais para uma compreensão dialética do problema da comunicação na contemporaneidade. A combinação dessas perspectivas tem o intuito de construir uma perspectiva relacional das temáticas abordadas pelos autores e, com eles, traçar uma crítica estrutural à forma e ao conteúdo da comunicação e da tecnologia, isto é, a seu viés mercantil e a sua organização como Indústria Cultural, culminando com a proposição de uma práxis contra-hegemônica. Além da discussão teórica, exemplos de resistências na América Latina iluminam o debate proposto.
1. Forma social da comunicação
Paulo Freire não chegou a desenvolver uma teoria da comunicação, mas seu legado ao campo é reconhecido (Berger, 1999; Lima, 2004), especialmente no que tange à compreensão desenvolvida sobre a cultura como criação humana, práxis dialógica. O problema do conhecimento, tão caro aos debates contemporâneos sobre a comunicação, percorre sua obra. Em Extensão ou Comunicação, critica os processos baseados na transmissão unilateral de saberes, análise pertinente à crítica sobre os modelos de comunicação baseadas na transmissão de uma mensagem do emissor para o receptor. Uma prática libertadora deve considerar que “educador e educando assumam o papel de sujeitos cognoscentes, mediatizados pelo objeto cognoscível que buscam conhecer” (Freire, 2013, p. 18-19).
Essa relação não se dá apenas entre os sujeitos imediatamente envolvidos na educação (ou na comunicação). O homem, diz, “atuando, transforma; transformando, cria uma realidade que, por sua vez, ‘envolvendo-o’, condiciona sua forma de atuar. Não há, por isso mesmo, possibilidade de dicotomizar o homem do mundo, pois que não existe um sem o outro” (Freire, 2013, p. 19). Para desvelar as inter-relações entre os fatos, para além das aparências, ele propõe que a realidade seja apreendida como campo de ação e reflexão, o que é resultado da problematização e da tomada de consciência dela. Sem isso, como exemplifica ao falar da introdução de uma nova técnica, as novidades podem provocar comportamentos que vão da recusa à aceitação.
Tal questionamento está ligado à percepção da totalidade social, sem a qual “se perde o homem na visão ‘focalista’ da mesma”. A percepção parcializada da realidade rouba ao homem a possibilidade de uma ação autêntica sobre ela” (Freire, 2013, p. 24). Trazendo para nossa questão, enfatizar as práticas sem o reconhecimento das relações mais gerais pode levar a um erro de estratégia. Afinal, concordamos com Lima (2011, p. 143): “a verdadeira comunicação é um processo cultural autêntico —tanto a nível interpessoal (interativo) como macrossocial— dependerão de uma transformação radical da sociedade que conduza à libertação dos oprimidos”.
As disputas em torno dos sentidos, o exercício das diferentes recepções ou os usos são importantes e evidenciam a agência humana, mas não resumem a tarefa da práxis da resistência. Para isso, é necessário transformar os meios de comunicação de forma profunda, o que significa desenvolver outra forma social da comunicação. Freire não chegou a desenvolver essa crítica, dado seu foco nas questões da cultura e da educação propriamente. Não obstante, é notável que as mudanças nas comunicações e seus impactos motivaram olhares preocupados de estudiosos da cultura, naquele mesmo período, como é o caso de Raymond Williams.
Um dos fundadores dos estudos culturais britânicos, Williams pensou sobre a disputa da cultura de forma ampla, daí a elaboração do “materialismo cultural”, o reconhecimento dos meios de comunicação como meios de produção —“indispensáveis tanto para as forças produtivas quanto para as relações sociais de produção” (Williams, 2011, p. 69)— e sua percepção da centralidade da disputa ideológica na conformação da hegemonia.
Faltou, contudo, desenvolver um olhar dialético sobre o relacionamento entre economia e cultura. Essa tarefa ficaria a cargo do que tem sido chamado de Economia Política da Comunicação (EPC). No Reino Unido, o diálogo com sua proposição é claro. No texto seminal para a EPC, Garnham (1979) inicia com uma citação de Raymond Williams. Nela, destaca que os sistemas de comunicação tornaram-se instituições chaves nas sociedades capitalistas avançadas e, por isso, seriam necessários estudos sobre propriedade e controle da imprensa, além de uma revisão da fórmula de base e superestrutura e da definição de forças produtivas, tendo em vista o estreitamento entre a atividade econômica em larga escala e a produção cultural. Apesar das aproximações, EPC e estudos culturais distanciaram-se, com esta se distanciando do marxismo em direção ao pós-estruturalismo francês que, se acertou ao apontar lacunas no pensamento crítico, levou à redução da crítica e ao desenvolvimento de uma perspetiva de convivência com as estruturas que sustentam o capitalismo, enfatizando as práticas de negociação para a sobrevivência neste cenário. ajustado trecho sobre estudos culturais. Também na América Latina, houve um deslocamento das questões gerais do poder, dando centralidade às reelaborações e resistências na recepção dos conteúdos, bem como à hibridização da cultura e às práticas de consumo, como em Canclini (1998). Não é o caso, aqui, de detalhar essa crítica já conhecida (Mattelart e Neveu, 2004).
Quanto à EPC, esta se desenvolveu na região de forma autônoma, em paralelo ao que ocorria em outros países, por caminhos mais próximos do estruturalismo histórico latino-americano e das teorias da dependência, que buscavam particularizar a situação latino-americana na divisão internacional do trabalho e destacar o papel da ideologia na manutenção da dependência cultural (Bastos, 2020). Esse foi o “caldo cultural” em que foi forjada inicialmente, no Brasil, a EPC. A ênfase na crítica dos sistemas de comunicação e das relações de poder, derivada do cenário de concentração da mídia na relação e de sua instrumentalização, deu-se em um período em que boa parte do pensamento social afastava-se de tais questões, pelos motivos explicitados na Introdução, bem como acompanhando a redemocratização da região.
Nome de destaque na área, César Bolaño (2000) especificou as relações entre capitalismo, informação e comunicação, identificando a forma específica que esta assume no capitalismo monopolista. Seguindo o método da derivação das formas incluídos trechos em vermelho e rodapé1 que objetiva “apreender traços essenciais do concreto empírico, de modo a apresentar a lógica imanente de articulação de elemento aparentemente desconexos” (Bolaño, 2016, p. 93), ele identifica três contradições da informação. No plano da aparência, se adequa às necessidades de circulação mercantil, que pressupõe a igualdade dos participantes, mas estando já sujeita ao fetiche. Na esfera da produção, a informação revela-se hierarquizada, verticalizada, burocratizada, compatível com o poder da empresa, mas também horizontalizada e cooperativa. Trata-se de uma comunicação de classe. Em ambas situações, aponta Bolaño (2000), a informação não é mercadoria, mas poder. A terceira contradição está associada ao surgimento dos grandes sistemas de comunicação, em que a informação é propriamente mercadoria.
Com esse movimento, o autor percebe que a comunicação de massa surge como resposta ao capitalismo monopolista, por meio da qual se mascara a comunicação de classe, também por apresentar uma aparência de democratização, embora sirva aos objetivos de manipulação e controle. O autor chega, daí, à possibilidade lógica da Indústria Cultural, compreendida como instância central de mediação no capitalismo monopolista, para a qual contribui o trabalhador cultural, produtor tanto do produto quanto da audiência. Como tal, é permeada pelas contradições intrínsecas já à informação e também derivadas do contexto histórico, e está sujeita a condições de funcionalidade, podendo desenvolver as funções propaganda, publicidade e programa (Bolaño, 2000).
Em diálogo com o aporte regulacionista e com a escola da Unicamp, o autor identifica, a partir daí,todo um modo de regulação adequado às necessidades do capital ao longo do século XX. Necessidades que permanecem no momento atual, mas com contornos específicos dadas as reconfigurações na dinâmica de acumulação nas últimas décadas, que levam a alterações no interior no modo de regulação setorial, conforme discutimos em outro trabalho.
Bolaño (2002) aponta que a crescente subsunção dos diversos tipos de trabalho, incluindo o cultural, pela automatização e codificação, ainda que
limitada, é chave para o entendimento da reestruturação produtiva do sistema, em que as tecnologias da informação e da comunicação passam a ter centralidade. Se “la hegemonía se produce en ese sentido, según la conocida dinámica cultura de masa / cultura popular, como obra del capital individual invertido en el campo de la producción simbólica en la medida en que emplea trabajo cultural” (Bolaño, Paez e Herrera-Jaramillo, 2020. p. 156), ela é reforçada no momento atual, em que:
Mais do que invadir a cultura, o capital torna-se cultura, no sentido mais amplo do termo, e a forma mercadoria passa a monopolizar o conjunto das relações sociais, inclusive aquelas mais internas ao mundo da vida e, antes, mais resistentes à expansão da lógica capitalista. A primeira conseqüência desse movimento é que a cultura adquire uma importância crucial para o próprio modo de produção, em cujo âmago agora se situa, tornando fundamentais, por sua vez, os conflitos que se dão na esfera cultural, inclusive pela característica de mediador que tem o trabalho intelectual, o qual mantém, nesta nova situação, uma relação com o capital semelhante àquela que o trabalho da classe operária tradicional mantinha (segunda conseqüência), com a diferença (terceira) de que estamos ainda no início do processo de passagem da subsunção formal à real do trabalho intelectual no capital, o que dá ao primeiro um grau de autonomia que o trabalhador manual perdeu há muito tempo. (Bolaño, 2012, p. 15)
Essas mudanças possuem as implicações mais amplas (como em relação à esfera pública que emerge dessa nova situação) quanto também para a organização do setor das comunicações. Dados os limites deste texto, avancemos em relação a este ponto, que está relacionado à dinâmica da concorrência e às formas institucionais que, resume Bolaño (2016, p. 87), “operam de acordo com três princípios de ação: a lei, a regra ou o regulamento, o compromisso e o sistema de valores e representações”.
Se a primeira década e meia dos anos 2000 foi marcada pelo confronto sintetizado na analogia de um duelo entre os radiodifusores, os operadores de telecomunicações e a sociedade civil (Dantas, 2013, p. 213), vimos, nos últimos anos, a entrada das plataformas digitais, sobretudo estadunidenses, entre os principais blocos de capital que disputam as políticas das comunicações. Estes agentes, no sentido que compreende Valente (2019, p. 169), detêm um papel de mediação ativa e incidem diretamente no controle dos fluxos de informações em âmbito global, diferente do poder exercido pelos grupos nacionais de radiodifusão ou mesmo pelos conglomerados cinematográficos transnacionais, seja pela presença constante das plataformas ou pela penetração delas nas diversas relações sociais.
Para chegarmos até aqui, desde os anos 1990, houve uma reconfiguração no setor das telecomunicações e da Internet, tornando-os mais submetidos à dinâmica do capital, como diagnosticado por Bolaño e Vieira (2014). Esse processo culmina na conformação das plataformas. Diferentemente dos meios tradicionais que, ainda que com muitos limites, eram pressionados pelo interesse público, as corporações da internet, fragilmente reguladas, em consonância com a dinâmica neoliberal, baseiam-se essencialmente na busca pelo lucro. Para tanto, desenvolveram um modelo baseado na coleta de dados, na moderação algorítmica e na subordinação da circulação dos conteúdos aos seus interesses e/ou ao pagamento (como nos impulsionamentos), procedimentos úteis também às formas de controle social que engendram.
Inicialmente justificado por um conjunto de teorias apologéticas, os problemas associados a esse cenário têm se revelado, pelo menos, desde as denúncias do ex-agente da NSA Edward Snowden, em 2013, que ajudaram a pôr em questão a ideia ilusória de neutralidade dos chamados “intermediários” e toda a visão de liberdade que os envolvia. Ao contrário, as plataformas são guiadas por termos de uso que funcionam como leis definidas unilateralmente (Morozov, 2019). Depois, campanhas de desinformação que se beneficiam do modelo de negócios dessas plataformas evidenciaram os impactos políticos que implicam as plataformas. Outras questões emergiram, como a crítica ao funcionamento algorítmico para conferir diferente relevância a determinados conteúdos (Gillespie, 2018), geralmente de forma opaca (Pasquale, 2015), com o objetivo de prever e modular o comportamento do usuário; os vieses de gênero, raça e classe que marcam da elaboração à execução dos algoritmos (O’Neil, 2020); a produção de bolhas (Bryant, 2020) que prejudicam o debate democrático; o recrudescimento da vigilância, entre outras questões. Tudo isso aponta para a configuração de um novo sistema de dominação, em um contexto de crise.
Diante desse cenário, a classe trabalhadora não tem ofertado alternativas de conjunto. Algumas pistas, todavia, parecem ser traçadas. Uma delas, a defesa do caráter público, que tem sido levantada por diferentes agentes, como exemplifica o documento síntese do encontro Netmundial, de 2014, que “reconheceu que a Internet é um recurso global que deve ser gerido no interesse público”. Mais recentemente, o tema foi elaborado na forma do manifesto The Public Service Media and Public Service Internet Manifesto, subscrito por organizações e intelectuais. Não obstante, é preciso ver o público não apenas como uma opção ao privado, mas, de forma mais ampla, como uma contraposição às instituições e formas culturais capitalistas.
Da mesma forma, a atuação nas “brechas” de plataformas de redes sociais é limitada, assim como propostas que ampliam o uso das tecnologias a partir de empresas privadas, em parceria com o Estado. Sem enfrentar forma e conteúdo, populações são envoltas em uma interatividade que é funcional para a captura da atenção (Figueiredo e Bolaño, 2017), permeada por lógicas que favorecem a centralidade de estruturas centrais para o capitalismo. Nosso desafio é também o de repensar as forças produtivas e, mais que tomá-las como pressupostos, questionar a maquinaria dada, considerando-a portadora de valores e orientadora de práticas, daí a necessidade de aprofundar a crítica da tecnologia.
2. A necessária crítica da tecnologia
Partimos, então, da análise da tecnologia como resultado de relações sociais de produção. Essa visão, apesar de ter perdido espaço diante das teses acríticas sobre a internet nos anos 1990, tem uma trajetória larga na teoria crítica, como exemplificam os trabalhos da Escola de Frankfurt, de onde originam abordagens críticas sobre a tecnologia como as de Marcuse (1973), continuadas por Feenberg (2002, 2005), e também o de Bolaño (2000), revisitada na primeira seção do presente artigo.
Buscando seguir o diálogo entre latino-americanos, destacamos o pensamento de Álvaro Vieira Pinto, com sua crítica à neutralidade da ciência e da tecnologia no âmbito de uma crítica da economia política da dependência. A partir da abordagem da técnica centrada na condição social e suas contradições, Pinto denunciou e questionou o desencadeamento de análises dualistas e deterministas, de “maravilhamento” ou de “embasbacamento” diante das máquinas (Pinto, 2005a).2 A necessária tomada de consciência para reafirmar a tecnologia como algo que está em constante construção social —e afastar os discursos fetichistas— coloca a categoria de classe no centro do debate sobre a tecnologia. Essa abordagem é tão crucial para Vieira Pinto quanto para Bolaño (2002, p. 63), quando afirma que “A informação é agora informação de classe”. A expropriação do conhecimento da classe trabalhadora e a desigualdade daí resultantes são aprofundadas com a dependência tecnológica.
Dizer que a cibernética tem uma base de classe equivale a dizer que todos os conceitos, métodos e maquinismos que a integram ou que ela manipula têm, explícita ou implicitamente, essa base, ou seja resultam da presença do homem e das influências dos condicionamentos recebidos da estrutura da sociedade dividida à qual pertence, refletindo as necessidades da existência humana, origem da criação e desenvolvimento dos sistemas de informação e auto-regulação. (Pinto, 2005a, p. 31)
A oposição é posta entre uma teoria da cibernética que anuncia a transformação cultural pela introdução de instrumentos tecnológicos e outra, advinda do pensamento dialético, que apresenta a falácia do que hoje se chama de uma “sociedade da informação” diante da impossibilidade de que a informação, e a técnica, possa ser o motor do processo histórico de mudanças. Sendo a técnica “consubstancial a condição do ser social”, visto que “não tem origem fora do processo em que o homem se constitui” (Pinto, 2005b, p. 765), são as condições da sociabilidade capitalista que impõem estratégias e políticas vinculadas à lógica de acumulação que acabam por ofuscar as formas sociais da tecnologia.
A rejeição da expressão “era tecnológica”, na obra de Vieira Pinto (2005a), leva à percepção de que as décadas de 1960 e 1970, marcadas pelo auge da televisão, não podem ser consideradas menos tecnológicas do que os tempos atuais com a disponibilização intensiva de serviços e plataformas conectados em redes digitais; assim como os tempos vindouros, diante dos avanços da biotecnologia e da inteligência artificial, não poderão vir a ser considerados mais tecnológicos do que o tempo atual. Isso porque, independentemente do estágio científico e tecnológico no qual nos encontramos, do ábaco aos modelos de negócios das plataformas, baseado em extração de dados (Srnicek, 2017), vivemos, como condição inerentemente humana, em uma era tecnológica.
Quando Freire (1984) se posiciona como um homem do seu tempo, e não exilado dele, declarando por isso não ter nada contra as máquinas em si, isso não o impede de indagar sobre “a serviço de quem as máquinas e a tecnologia avançada estão?” e de identificar, assim, o problema da conformação da técnica. Não por acaso Freire (1967, p. 58) referiu ser “indispensável a leitura de estudos sérios e profundos do mestre brasileiro Álvaro Vieira Pinto”.
Suas reflexões (Freire, 1984; Freire & Guimarães, 1984) partem dessa abordagem ao enfatizar a preocupação com uma consciência crítica diante das invenções tecnológicas da humanidade. É com ênfase na origem da tecnologia como resultado da criação e expressão humana que Freire, na transcrição dos diálogos com o educador Sérgio Guimarães, analisa e conclui sobre os meios de comunicação e conclui, semelhante aos outros autores aqui mencionados, que as possibilidades tecnológicas não são nem boas nem más em si mesmas mas tampouco são neutras, pois resultam de uma construção política carregada de valores em disputa.
A perspectiva de Freire sobre os meios de comunicação está inserida no âmbito da teoria do conhecimento que o autor desenvolveu sobre educação e converge com a abordagem de Vieira Pinto quanto à impossibilidade de se pensar o problema dos meios sem pensar a questão da consciência política e do poder, o que também norteia o pensamento marxista de César Bolaño. Assim, as contribuições teóricas de tais autores elucidam que grande parte daquilo que conhecemos como um sistema comunicacional resulta, primeiro, de esforços humanos, inseridos em estruturas e em relações de poder marcadas pela luta de classes.
Mesmo aquilo que aparenta ser neutro deve ser visto sob tal prisma. Tomemos como exemplo a implantação das redes 4G e, agora, 5G. Neste cenário, as empresas desenvolvem e lucram com a oferta de serviços e produtos cada vez mais diversificados e velozes, embora exclusivos à parcela da população já conectada, em um contexto no qual o acesso à rede de Internet não chega a todos, o que revela o sentido do desenvolvimento tecnológico atual. Não por acaso, em âmbito mundial, há intensa disputa entre Estados Unidos e China em torno do 5G. No Brasil, o leilão do espectro entrou na lista de concessões e privatizações, integrando o programa do governo federal que considera a privatização de diversos ativos estatais, como parte do projeto neoliberal levado a cabo por Michel Temer e Jair Bolsonaro nos últimos 6 anos. Dentre elas estão incluídas as maiores empresas públicas de serviços em Tecnologia da Informação do país, como o Serviço Federal de Processamento de Dados (Serpro), a Empresa de Tecnologia e Informações da Previdência (Dataprev) e o Centro Nacional de Tecnologia Eletrônica Avançada (Ceitec).
O que está em causa é o aprofundamento da dependência tecnológica do país em relação a países estrangeiros que figuram na posição de exportadores de tecnologia para os países considerados, nos moldes do capitalismo, como periféricos, algo que Vieira Pinto (2005a) abordou ao chamar a atenção para duas noções que considera falsas, “uma, a de que a tecnologia consubstancia um bem a ser adquirido pelo país atrasado, pagando caro por ele, se quiser progredir; outra, a de que a tecnologia é produto exclusivo da região dominante e só aí pode ter origem” (Vieira Pinto, 2005a, p. 266). Ao apontar a racionalidade técnica como um processo imperialista, a concepção alvariana sobre a tecnologia nos coloca diante do enfrentamento por outras possibilidades e modos de organização da técnica.
3. Contra-hegemonia na comunicação: caminhos possíveis
Com a discussão a partir de Paulo Freire, César Bolaño e Álvaro Vieira Pinto, remetemos à questão fundamental da comunicação em sua forma atual e vimos que tal lógica marca o desenvolvimento tecnológica e também os usos associados a eles. Avançando para o fato de que o problema da apropriação antidemocrática dos meios comunicacionais não encontra saída por outras vias senão pela disputa política articulada às relações de poder, que se apresente como contra-hegemônica frente à lógica mercantil. A perspectiva de contra-hegemonia, aqui, é recuperada de Williams, para quem:
Isto é, na prática a hegemonia não pode nunca ser singular. Suas estruturas internas são altamente complexas, e podem ser vistas em qualquer análise concreta. Além do mais (e isso é crucial, lembrando-nos o vigor necessário do conceito), não existe apenas passivamente como forma de dominação. Tem de ser renovada continuamente, recriada, defendida e modificada. Também sofre uma resistência continuada, limitada, alterada, desafiada por pressões que não são as suas próprias pressões. Temos então de acrescentar ao conceito de hegemonia o conceito de contra-hegemonia e hegemonia alternativa, que são elementos reais e persistentes na prática. (Williams, 2007, p. 115-116)
Os elementos que levam ao questionamento da dominação não estão sempre explícitos nem mesmo são necessariamente percebidos de forma clara, pois há “[...] experiências sociais em solução, distintas de outras formas semânticas sociais que foram precipitadas e existem de forma mais evidente e imediata” (Williams, 1979, p. 136, grifo do autor). Com o desenvolvimento dos sistemas de comunicação, poderosas instituições culturais, as possibilidades de articulação desses questionamentos em sociedades tornam-se mais difíceis, daí o autor tratar da necessidade de uma “longa revolução”. A partir do aporte de Bolaño aqui discutido, podemos apontar que a ampliação da subsunção do trabalho ao capital na configuração das corporações midiáticas favorece a subsunção da cultura popular na economia, o que traz também contradições. Há, como apontam Bolaño et al. (2020, p. 157), um processo de apropriação, desapropriação e reapropriação. Para os atores, central nesse processo é o papel dos mediadores. Cumpre acrescentar ao debate desenvolvido por eles a ênfase na desigualdade em termos de produção, circulação e consumo, que compromete a possibilidade de autonomia cultural. Daí a necessidade de enfrentar estruturalmente essa desigualdade em torno da propriedade dos meios, o que passa pelas lutas em torno do modo de regulação e da regulação especificamente.
Na comunicação, as lutas no Brasil têm se dado, nas últimas décadas, nos marcos da institucionalidade e no que podemos apontar como produção alternativa. No âmbito da institucionalidade, desde a elaboração da Constituição Federal, os embates são constantes. Eles resultaram em um texto que contém propostas de cunho liberal e também progressistas (Autora, 2020, p. 95). A proposta de estatizar a comunicação chegou a ser apresentada por setores da esquerda na Assembleia Constituinte, mobilizando conservadores contra a subcomissão, cujo anteprojeto acabou por ser rejeitado3. Restou no texto a fixação da complementaridade entre os sistemas público, privado e estatal. Na prática, a hegemonia privada e a oligopolização da mediação, sobretudo em torno do Grupo Globo, foram consagradas.
Nos últimos anos, com a centralidade crescente da internet, é em torno da economia política da rede que os conflitos têm tido maior expressão. A tensão entre distintos agentes e visões se revela em legislações recentes, como o Marco Civil da Internet, de 2014, e a Lei Geral de Dados Pessoais, de 2018. Em ambos os casos, diferentes setores da sociedade civil participaram do processo legislativo, no qual atuaram também corporações transnacionais, como Google e Facebook, e grupos nacionais, a exemplo da Globo. Não é possível, aqui, reproduzir os interesses dos diferentes grupos, que podem ser vistos em Polo (2021). Nosso intuito é apontar que, da mesma forma, foram produzidas regras que combinam aspectos liberais e progressistas. As normas apontam preocupações como a participação cidadã a partir da internet e o reconhecimento de direitos dos usuários. No Marco Civil, o serviço de acesso à internet é posto como essencial, de caráter público e irrestrito, e a neutralidade da rede é afirmada.4 No caso da Lei Geral de Proteção de Dados Pessoais (LGPD), a regra limitou o tratamento de dados a finalidades específicas. Ambas criaram, com isso, obstáculos ao modelo de negócios assentado na produção de audiência trocada por publicidade e no uso de dados. Por outro lado, a concentração da produção social e a centralização de capital não foram questionadas, de modo que a desigualdade na dinâmica de apropriação segue posta. Desigualdade que se revela já no acesso das populações à rede e que se aprofunda na elaboração dessas tecnologias e na execução do trabalho cultural e intelectual nesses espaços.
Ainda que necessárias, especialmente em um país profundamente desigual como o Brasil, as possibilidades ensejadas pelas políticas públicas não esgotam nem são suficientes para cessar o encarceramento dos meios de comunicação à lógica do capital imperialismo, visto que em posse do aparelho estatal está um grupo dominante e desinteressado de liberar, do caráter ambivalente da tecnologia, o seu potencial para ser, nos termos de Vieira Pinto (2005a, p. 262) “esperança de liberdade e o instrumento para consegui-la”. Outra forma de disputa relacionada aos meios de comunicação se expressa na produção chamada alternativa, que acompanhou a história latino-americana (Berger, 1999) e ganhou projeção com a internet. Por meio das redes sociais, são constantes as articulações e produções de sentido, como vimos em recentes campanhas feministas (#MeToo), na internacionalização da luta antirracista (caso do #BlackLivesMatter). Igualmente, cresce a presença indígena e de movimentos sociais nesses espaços. Há uma maior diversidade de vozes circulantes, que converge e reforça demandas justas por representação. A produção alternativa também está associada ao enfrentamento do processo de subsunção do trabalho intelectual e cultural, como no caso da comunicação alternativa.
Não obstante, considerando o processo como um todo, as contradições e limites devem ser vistos. É no ambiente desenhado para fomentar a acumulação e a reprodução do capital, como no caso das grandes plataformas digitais, que vemos inseridas tais iniciativas. Porém, diante da ausência de autonomia sobre as estruturas comunicacionais, que impacta da produção à circulação da comunicação, é preciso refutar a aparência de liberdade e neutralidade. Urge combinar a análise das corporações, das materialidades e tecnologias à dos usos sociais, pois sobre o domínio privado e autoritário, as plataformas de redes sociais discriminam, manipulam ou mesmo censuram conteúdos, além de imporem uma estética e um sentido alinhados às demandas do capital em busca de uma autovalorização cada vez mais veloz.
Uma proposição do resgate da totalidade passa, além dos usos, pelo desenvolvimento e implantação de tecnologias que envolvam infraestruturas públicas e descentralizadas dos limites institucionais e econômicos postos, com vistas à desmercantilização. A implementação de tecnologias descentralizadas, que incentivam um esforço coletivo, tem como exemplo o caso de Vila Fumaça, documentado por Vianna (2017). O projeto, de uma rede de Internet, contou com o manuseio e a preparação de equipamentos —roteadores, antenas parabólicas, fontes de eletricidade, cabos e computadores— pelos moradores e voluntários, e posteriormente com a gestão e manutenção da rede pela própria comunidade. As redes comunitárias têm como potencial de expansão projetos como o Tiwa, desenvolvido pelo Instituto Nupef, no Brasil; o Rhizomatica, no México; entre outros. Das distintas formas de conformação das tecnologias da informação e da comunicação, as iniciativas geridas por arranjos cooperativos (Scholz, 2016) despontam também como um importante instrumento de luta para a classe trabalhadora diante do cenário de trabalho precarizado mediado por plataformas.
Essas iniciativas podem ser vistas como prefigurativas, mas perdem força e impacto se isoladas. Em meio a um sistema cada vez mais interligado, que tem nos aparatos da comunicação digital um elemento central, que impõe um sistema global de cultura penetrante, e enfrenta crises tão profundas que ameaçam a vida das populações e do planeta, é necessário disputar efetivamente a forma social dos projetos tecnológicos se o objetivo for mudar a sociedade. Não há plena liberdade sob o capitalismo. Muito menos em redes sociais que são resultantes e impulsionadoras dele. Em resumo: “el elemento estratégico es obviamente el de la apropiación social de la tecnología y el problema clave de la economía política de internet es quiénes son al fin de cuentas los mediadores”. (Bolaño, Paez e Herrera-Jaramillo, 2020, p. 161).
Conclusões
O lugar para a elaboração da superação do cenário hegemônico no setor em debate e na sociedade, em geral, é o processo histórico, como resultado da luta de classes. As discussões apresentadas aqui, a partir dos aportes dos autores destacados, apontam para a necessidade de um programa de estudos e diretamente político que combine a disputa em torno do modo de regulação e o desenvolvimento de uma mediação com vistas à autonomia cultural em relação ao projeto hegemônico, superando a fragmentação que oculta a essência do capitalismo.
Tal fragmentação é reproduzida em muitas teorias em voga no campo, como em perspectivas que limitam a resistência aos usos, sem a perspectiva de ruptura com o modo de regulação posto. Por outro lado, a ausência da discussão sobre o problema da subsunção e do modo de regulação acabam aproximando proposições do tipo “socialismo digital” (Morozov, 2020) e as ideias apresentadas no Manifesto Aceleracionista (2013) de um viés tecnodeerminista. Desprovidas de um projeto político autônomo, tais proposiçõesreforçam postulados conservadores, como o fetichismo em torno desenvolvimento tecnológico, além de ideias sobre eficiência e racionalidade caras ao neoliberalismo, para não falar na ausência de crítica aos impactos ambientais dessa economia conectada, cuja dinâmica atual contribui com a crise ambiental que vivenciamos. Como afirma Freire “não é a informática que pode responder [a favor de quem, ou contra quem as máquinas estão sendo postas em uso]. Uma pergunta política, que envolve uma direção ideológica, tem de ser respondida politicamente”.
Com base em uma teoria crítica da tecnologia, fica nítida a impossibilidade da transformação cultural pela introdução de instrumentos tecnológicos, uma abordagem central para a superação do controle hegemônico dos meios de comunicação, que também se reproduz ideologicamente. Ao contrário, devemos enfatizar o papel da cultura e da formação da consciência crítica. Aqui, contribuem tanto a EPC quanto os estudos freireanos, porque nos permitem ver que as relações entre economia e cultura, estruturas e práticas sociais. Com ambos, é possível desenvolver uma abordagem dialética, que tome a totalidade não apenas como soma e que permita superar as abordagens focalistas e idealistas sobre o processo de comunicação.
O debate aqui apresentado vincula a discussão da apropriação tecnológica à autonomia cultural, o que é ainda mais candente no caso brasileiro e latino-americano, em geral, tendo em vista a inserção desigual dos nossos países na economia digital. Na disputa por um projeto que considere a comunicação contra-hegemônica orientada em seus fundamentos por uma perspectiva pública, há necessidade de lutas na institucionalidade, onde se disputam os rumos da regulação do setor, a qual aponta, em sua dinâmica hegemônica, para a privatização das comunicações. Em um momento de crise, que se revela em forte incidência dos grupos privados para se apropriarem do fundo público e/ou para abrirem mais fronteiras para a acumulação do capital, impor resistências nesse terreno é necessário, o que favorece também o debate público sobre o tema. Questões como combate à concentração das plataformas digitais, políticas de enfrentamento ao monopólio na produção audiovisual, medidas de combate à manipulação a partir de campanhas de desinformação são exemplos de políticas em debate, atualmente, em diferentes países, inclusive no Brasil, que embora tratem de uma dimensão bastante empírica remetem ao conjunto do modo de regulação setorial.
Os caminhos de ação compreendem também as resistências que, a partir da produção comunicativa, estabelecem uma fundamental disputa de sentidos na sociedade. Mas, sabendo que os valores estão inscritos também na própria tecnologia e nas formas de inserção social dela, nesse processo há riscos de uma desigual apropriação das práticas no sentido do fortalecimento da hegemonia, a partir da fragmentação das resistências e do enquadramento das críticas pela Indústria Cultural, que se adapta para buscar a manutenção do poder da classe dominante.
Essas distintas vias não nos colocam diante de uma bifurcação, na qual a escolha por um caminho é excludente do outro, mas trazem questões para a reflexão. Aqui, buscamos apontar contribuições desde Paulo Freire, César Bolaño e Álvaro Vieira Pinto, porque a leitura deles nos permite compreender a profunda relação entre comunicação e capitalismo, colocar em questão o atual projeto, também tecnológico, que reproduz e aprofunda relações assimétricas de poder, bem como, indo além do realismo capitalista, refletir sobre possibilidades e caminhos de transformação.
Referências
Arizmendi, L. (2012). La crítica de la economía política ante la crisis contemporánea y su vigencia en el siglo XXI. In Foro de diagnóstico para reforma curricular de la licenciatura escolarizada, 1., Ciudad de México. Ponencias. Ciudad de México: Facultad de Economía. p. 1-18. http://132.248.45.5/foro2012/ponencias/LUIS%20ARIZMENDI.pdf.
Bastos, M. (2019). Indústria Cultural e capitalismo tardio: Origens da Economia Política da Comunicação no Brasil em Mercado Brasileiro de Televisão. Chasqui. Revista Latinoamericana de Comunicación, 1(142), 187-202. https://doi.org/10.16921/chasqui.v1i142.4121.
Berger, C. (1999). Crítica, perplexa, de intervenção e de denúncia: a pesquisa já foi assim na América Latina. Intexto, (6), 21-36. https://seer.ufrgs.br/intexto/article/view/3386.
Bolaño, C. R. S. (2000). Indústria Cultura, Informação e Capitalismo. São Paulo: HUCITEC.
_____________. (2002). Trabalho Intelectual, Informação e Capitalismo. A re-configuração do fator subjetivo na atual reestruturação produtiva. Revista da Sociedade Brasileira de Economia Política, Vol. 15, N. 11, p. 53-78.
_____________. (2016). Campo Aberto – para a crítica da epistemologia da comunicação. Aracaju: Edise.
Bolaño, C., e Vieira, E. (2014). Economía política da internet e os sites de redes socias. Eptic online: revista eletrônica internacional de economia política da informação, da comunicação e da cultura, Vol. 16, N. 2, p. 71-84. Brasil: Eptic. https://seer.ufs.br/index.php/eptic/article/view/2168.
Bolaño, C., Paez, A., e Herrera-Jaramillo, M. (2020). Mediação, subsunção e apropriação social. Contribuições ao diálogo entre estudos culturais, economia política e comunicação. https://www.researchgate.net/publication/340004245_MEDIACAO_SUBSUNCAO_E_APROPRIACAO_SOCIAL_CONTRIBUICOES_AO_DIALOGO_ENTRE_ESTUDOS_CULTURAIS_ECONOMIA_POLITICA_E_COMUNICACAO.
Bryant, L. (2020). The YouTube Algorithm and the Alt-Right Filter Bubble. Open Information Science, 4(1), 85-90. https://doi.org/10.1515/opis-2020-0007.
Canclini, N. G. (1998). Culturas híbridas: estratégias para entrar e sair da modernidade. São Paulo: Edusp.
Cevasco, M. E. (2007). Prefácio. In Willians, R. Palavras-chave: um vocabulário de cultura e sociedade. São Paulo: Boitempo, p. 9-20.
Dantas, M. (2013). Comunicações, desenvolvimento, democracia: desafios brasileiros no cenário da mundialização mediática. São Paulo: Fundação Perseu Abramo.
_________. (2021). Álvaro Vieira Pinto e a Dialética da Informação. Princípios, 40(162), 41–74. https://doi.org/10.4322/principios.2675-6609.2021.162.003.
Feenberg, A. (2002). Transforming Technology: a critical theory revisited. New York: Oxford.
Feenberg, A. (2005). Critical theory of technology: an overview. Tailoring Biotechnologies, v. I, N. I, Winter, p. 47-64.
Figueiredo, C., e Bolaño, C. (2017). Social Media and Algorithms: Configurations of the Lifeworld Colonization by New Media. The International Review of Information Ethics, 26. https://doi.org/10.29173/irie277.
Freire, P. (1967). Educação como prática da liberdade. Rio de Janeiro: Paz e Terra.
———. (1984). A máquina está a serviço de quem? Revista BITS. http://acervo.paulofreire.org:8080/xmlui/handle/7891/24.
———. (1996). Pedagogia da autonomia: saberes necessários à prática educativa. São Paulo: Paz e Terra.
———. (2001). A Educação na cidade. São Paulo: Cortez Editora.
———. (2013). Extensão ou comunicação? Tradução Rosiska Darcy de Oliveira. Rio de Janeiro: Paz e Terra.
Garnham, N. (1979). Contribution to a political economy of mass-communication. Media, Culture & Society, 1(2), 123–146. https://doi.org/10.1177/016344377900100202.
Gillespie, T. (2018). All Platforms Moderate. In Custodians of the Internet: Platforms, Content Moderation, and the Hidden Decisions That Shape Social Media (pp. 1-23). New Haven: Yale University Press.
Gramsci, A. (2002). Cadernos do Cárcere. Vol. 3. Maquiavel, notas sobre o Estado e a política. Trad. Carlos Nelson Coutinho. 3ª ed. RJ: Civilização Brasileira.
Grohmann, R. (2016). Humanist and Materialist Perspectives on Communication: The Work of Álvaro Vieira Pinto. TripleC: Communication, Capitalism & Critique. Open Access Journal for a Global Sustainable Information Society, 14. https://doi.org/10.31269/triplec.v14i2.743.
Lima, V. A. (2004). Mídia, Teoria e Política. 2. ed. São Paulo: Editora Fundação Perseu Abramo.
Lima, V. A. (2011). Comunicação e cultura: as ideias de Paulo Freire. 2a ed. rev. Brasília: Editora Universidade de Brasilia; Fundação Perseu Abramo.
Lopes, R. (2008). Informação, conhecimento e valor. São Paulo: Radical Livros.
Marcuse, H. (1973). A ideologia da sociedade industrial: o homem unidimensional. 4. ed. Rio de Janeiro: Zahar.
Martín-Barbero (1995). América Latina e os anos recentes: o estudo da recepção em comunicação social. In Souza, M. W. (Eds.). Sujeito, o lado oculto do receptor, São Paulo: Brasiliense.
Mattelart, A., e Neveu, E. (2004). Introdução aos estudos culturais. São Paulo: Parábola.
Morozov, E. (2019). ¿Socialismo digital? El debate sobre el cálculo económico en la era de los big data. New Left Review. https://newleftreview.es/issues/116/articles/digital-socialism.pdf.
Morozov, E. (2020, fevereiro). Socialismo digital Reimaginando a socialdemocracia no século XXI. 6. https://eleuterioprado.files.wordpress.com/2020/07/morozov-socialismo-digital.pdf
O’Neil, C. (2020). Algoritmos de destruição em massa: como o big data aumenta a desigualdade e ameaça a democracia. Santo André, SP: Editora Rua do Sabão.
Pasquale, F. (2015). The black box society: the secret algorithms that control money and information. Cambridge, Massachusetts; London, England :Harvard University Press.
Polo, M. (2021) Ideologia, discurso e Internet: uma análise dos discursos parlamentares sobre a neutralidade da rede, em Portugal e no Brasil (2006-2019) (Tese de Doutorado). Universidade do Minho. http://hdl.handle.net/1822/74190.
Pinto, A.V. (2005a). O Conceito de Tecnologia. Vol. I. Rio de Janeiro: Contraponto.
———. (2005b). O Conceito de Tecnologia. Vol. II. Rio de Janeiro: Contraponto
Scholz, T. (2016). Platform cooperativism. Challenging the corporate sharing economy. New York, NY: Rosa Luxemburg Foundation.
Srnicek, N., e Williams, A. (2014) Manifesto aceleracionista. Lugar Comum, #41, 2014. http://uninomade.net/lugarcomum/41/.
Srnicek, N. (2017). Platform capitalism. Cambridge: Polity Press.
Valente, J. (2019). Tecnologia, informação e poder: das plataformas online aos monopólios digitais (Tese de Doutorado). Universidade de Brasília. https://periodicos.unb.br/index.php/sociedade/article/view/35544.
Vianna, B. (2017). Comparing Two Community Network Experiences in Brazil. Community Networks: the Internet by the People, for the People. FGV Direito. Rio de Janeiro, p. 207.
Williams, R. (1962). The Existing Alternatives in Communications. Socialism in the sixties.
Ed. 337. London: Fabian Society.
———. (1979). Marxismo e Literatura. Rio de Janeiro: Zahar.
———. (2007). Palavras-chave: um vocabulário de cultura e sociedade. Trad. de Sandra Guardini Vasconcelos. São Paulo: Boitempo.
———. (2011). Cultura e materialismo. Trad. André Glaser. São Paulo: Editora Unesp.
1 Método que inicialmente, na Alemanha, tratou de “revelar a essência das relações sociais plasmadas no Estado” (Bolaño, 2016, p. 78), foi utilizado por Bolaño para, no mesmo sentido, esclarecer as relações entre cultura, acumulação e reprodução do capital, passando de um nível mais elevado de abstração à análise do movimento histórico concreto. Para tanto, parte, como Marx com a mercadoria, do elemento mais simples, a informação, localizando suas contradições para, então, particularizar a forma cultura da relação social capitalista, expressa no século XX na Indústria Cultural, forma cultural do capitalismo monopolista, com diferentes funções (publicidade, propaganda e programa).
2 O trabalho do autor tem sido retomado recentemente no campo da Comunicação, como exemplificam os estudos de Grohmann (2016) e Dantas (2021), particularmente no que tange à cibernética e sua contribuição para as teorias da comunicação.
3 Disponível em https://tiwa.org.br/sobre e https://nupef.org.br/. Acesso 22 de maio 2022.
4 Disponível em https://www.rhizomatica.org/. Acesso: 22 de maio 2022.