Buen Vivir/Vivir Bien e a proposta comunicativa da TeleSUR
Buen Vivir/Vivir Bien and TeleSUR’s Communicative Proposal
Buen Vivir/Vivir Bien y la propuesta comunicativa de la TeleSUR
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Adilson Vaz CABRAL FILHO
Brasil
Universidade Federal Fluminense
acabral@comunicacao.pro.br
Domingos ALVES DE ALMEIDA
Brasil
Universidade Federal Fluminense
Oricd: https://orcid.org/0000-0002-1857-8201
domingosaa@id.uff.br
Chasqui. Revista Latinoamericana de Comunicación
N.º 150, agosto - noviembre 2022 (Sección Monográfico, pp. 195-212)
ISSN 1390-1079 / e-ISSN 1390-924X
Ecuador: CIESPAL
Recibido: 10-05-2022 / Aprobado: 11-08-2022 / Publicado: 21-08-2022
Resumo
A Televisión del Sur-teleSUR foi criada em julho de 2005 para impulsionar, desde o campo midiático, a integração regional das culturas e dos povos latino-americanos, colocando-se como “la voz informativa de América Latina” em contraponto às narrativas externas sobre a região. Assim, este trabalho objetiva analisar a proposta comunicativa adotada pela emissora na América Latina. Como dispositivo analítico, utilizamos a pesquisa bibliográfica, documental e Análise de Discurso de orientação francesa. Na fundamentação teórica recorremos à perspectiva epistêmica do Buen Vivir/Vivir Bien, complementada com autores que problematizam a mídia latino-americana. Concluímos que a teleSUR acentua o binarismo geográfico Norte/Sul, pela negação do Norte e reforço ao Sul, contrapondo-se a visões externas e, especialmente, as emissoras estadunidenses.
Palavras-chave: teleSUR, América Latina, Buen Vivir/Vivir Bien, discurso.
Abstract
Television of the South-teleSUR was created in July 2005 to promote, from the media field, the regional integration of Latin American cultures and peoples, placed as “the informative voice of Latin America” in contrast to external narratives about the region. This work analyzes its communicative proposal in Latin America. As an analysis device, we use bibliographical and documentary research and French Discourse Analysis. In the theoretical base we resort to the epistemic perspective of Good Living/Living Well, complemented with authors who problematize the Latin American media. Thus, we conclude that the teleSUR performance accentuates the North/South geographic binarism, when it denies the North and reinforces the South, in opposition to external views, specially US media groups.
Keywords: teleSUR, Latin America, Buen Vivir/Vivir Bien, discourse.
Resumen
La Televisión del Sur-teleSUR fue creada en julio de 2005 para promover, desde el ámbito mediático, la integración regional de las culturas y los pueblos latinoamericanos, poniéndose como “la voz informativa de América Latina” en contraste con las narrativas externas sobre la región. Así, con este trabajo pretendemos analizar la propuesta comunicativa adoptada por teleSUR en América Latina. Como dispositivo de análisis, utilizamos la investigación bibliográfica, documental y el análisis del discurso francés. Recurrimos a la perspectiva epistémica del Buen Vivir/Vivir Bien, con autores que problematizan los medios de comunicación latinoamericanos. De esta manera, concluimos que la actuación de teleSUR acentúa el binarismo geográfico Norte/Sur, al negar el Norte y reforzar el Sur, en oposición a emisoras americanas.
Palabras clave: TeleSUR, América Latina, Buen Vivir/Vivir Bien, discurso.
Introdução
A invasão exploratória e colonizadora imposta ao território compreendido como América Latina impulsionou diversas transformações sociais, econômicas, políticas e culturais ao longo dos séculos. Desde a invasão colonial, em 1492, os povos originários sobrevivem a uma civilidade solapada. Os invasores implantaram a escravidão —sobre os indígenas e africanos— com fins à exploração humana e saque das riquezas naturais, deixando como herança práticas perversas de dominação que se perpetuam até a atualidade.
Na América Latina o jogo de poder para a dominação é conduzido na atualidade, principalmente, pelos Estados Unidos e com menor influência pela Europa. Fato que explica a incisiva presença dos meios de comunicação estadunidenses na região, como as cadeias internacionais de notícias CNN en Español, Univisión e outras. Diversas foram as iniciativas para a criação de veículos regionais para se contraporem as versões da realidade latina construídas e narradas a partir do Norte.
Dentre essas iniciativas, destaca-se a criação da emissora de TV multiestatal, Televisión del Sur (teleSUR), em 2005, por iniciativa do então presidente venezuelano Hugo Chávez, com participação de Argentina e Uruguai, cujo objetivo era construir uma versão regional dos fatos, contrapondo-se diretamente aos discursos construídos pelos Estados Unidos para os latinos e sobre esses para o mundo. Além disso, a emissora é designada para atuar na desconstrução da versão entorpecida sobre a América Latina, criada pelas elites locais e que são colocadas em disputas no interior dos países da região.
Imbricada politicamente com os governos de esquerda, a emissora defende os projetos políticos desses, empreendendo um fazer jornalístico baseado nos ideais bolivarianos de Pátria Grande (Moraes, 2015), que possui forte adesão do governo venezuelano. Além disso, a TV propõe uma comunicação com horizonte para o Sul, de vocação popular em defesa dos povos latinos, e adota uma postura crítica aos Estados Unidos.
Nesse sentido, propomos analisar a proposta comunicativa adotada pela emissora na América Latina. Como dispositivo analítico, utilizamos a pesquisa bibliográfica, documental e Análise de Discurso (AD) de orientação francesa, com o intuito de apreender a exterioridade dos aspectos comunicativos da emissora. A função da AD é desvendar os sentidos ocultos ocultos que trazem os discursos, e que estão impregnados no que é produzido e materializado pela linguagem, pois “é pelo discurso que melhor se compreende a relação entre linguagem/pensamento/mundo, porque o discurso é uma das instâncias materiais (concretas) dessa relação” (Orlandi, 2010, p. 12) e, por isso, é carregado de subjetividades.
Ademais, aquilo que está verbalizado não revela literalmente o que se quer dizer ou está dito. Existem ditos que só são visíveis a partir de uma análise aprofundada, conforme explica o semiólogo argentino Eliseo Verón (2004, p. 49), para quem “as ausências, aqui como em toda parte, dizem tanto quanto às presenças”.
Na fundamentação teórica recorremos à perspectiva epistêmica do Buen Vivir/Vivir Bien, complementada com autores que problematizam a mídia latino-americana e discutem o papel da teleSUR. Para tanto, faremos a historicização e análise discursiva da proposta comunicativa da emissora, situando-a como instrumento comunicativo multiestatal da/para a América Latina, onde se propõe a narrar uma versão latina do cotidiano regional, em oposição ao construído a partir dos Estados Unidos, que levam ao mundo uma visão reducionista e desprestigiada da realidade latino-americana.
Comunicação e Buen Vivir/Vivir Bien
Nas mudanças de paradigmas políticos, sociais e culturais empreendidos na América Latina, principalmente a partir da primeira década do século XXI, as perspectivas de sociedade dos povos originários foram trazidas para o conhecimento público da região. Como são os casos de Bolívia (Buen Vivir) e Equador (Vivir Bien), que reformaram suas constituições para proporem um novo modelo de sociedade, baseada na cosmovisão originária andina, que tem a natureza como o centro da vida. Embora seja representada por palavras distintas, em diferentes regiões da América Latina, não problematizaremos os possíveis distanciamentos existentes na perspectiva conceitual de Buen Vivir e Vivir Bien. Adotamos as duas perspectivas de forma confluentes, considerando que trazem consigo a mesma cosmovisão dos povos originários, com suas particularidades contextuais.
O Buen Vivir/Vivir Bien, possui as estruturas de uma sociedade possível, que já existe na materialidade cotidiana dos povos originários. No entanto, para que seja ampliada e efetivada é necessária uma reconfiguração de comportamentos das sociedades ditas modernas. E partir dessa conjuntura é possível compreender a perspectiva da comunicação para o Buen Vivir/Vivir Bien. Para Baspineiros (2015), Barranquero-Carretero e Sáez-Baeza (2014), a comunicação para o Buen Vivir/Vivir Bien é a resposta à funcionalização dos processos comunicativos. Quando desenvolvemos as práticas de comunicação na cosmovisão dos povos originários, é indiscutível começar pelos sujeitos, suas experiências, suas vidas, suas palavras. Nesse sentido, a comunicação pode ser interpretada como uma outra comunicação, que dignifique a vida e a palavra.
Ainda segundo os autores, a comunicação para Buen Vivir/Vivir Bien é um processo de construção, de/construção e re/construção de sentidos sociais, culturais, políticos e espirituais de convivência intercultural e comunitária com reciprocidade, complementaridade e solidariedade, na instância de um relacionamento pessoal, social e natural harmonioso, por uma boa vida em plenitude que permita a superação de um “viver melhor” competitivo, assimétrico, excludente e individualizante reificado no capitalismo e (neo)colonialismo.
Entendemos assim, que a comunicação para o Buen Vivir/Vivir Bien se configura como um espaço simbólico que busca resistir e bloquear as estruturas culturais insustentáveis que derivam, entre outros, dos meios de comunicação comerciais. Além disso, como reforçam Barranquero-Carretero e Sáez-Baeza (٢٠١٤), essa comunicação contribui para o trabalho necessário de «descolonização epistemológica» da visão de mundo moderna que é construída pela mídia. Nesse aspecto, compreendemos que pensar a comunicação a partir dos povos originários é, sobretudo, cindir com o modelo tradicional estabelecido —colonial— para propor uma comunicação em que a vida seja o centro —biocêntrica—e que parta das experiências humanas acumuladas, no sentido de construir harmonia coletiva no cotidiano dos povos, cosmoconvivência, conforme explica Baspineiros (2015):
A Comunicação para o Vivir Bien/Buen Vivir tem que questionar o individualismo e a competitividade não solidária, enraizados no espírito do capitalismo. Também deve contribuir para descolonizar as práticas e pensamentos desumanizados e patriarcais do (neo) colonialismo. Assim como tem que questionar as práticas predatórias de crescimento econômico ilimitado. (Baspineros, 2015, p. 59) (tradução livre dos autores)
Ainda segundo Baspineiros (2015), o sentido comunicacional do Buen Vivir/Vivir Bien promove o exercício da palavra e o direito de expressá-la, tornando visível todas as culturas, todas as sociedades, com uma opção preferencial pelos excluídos do sistema, que também são silenciados pela mídia tradicional. Na América Latina, a exclusão e o silenciamento midiáticos estão arraigados no cotidiano dos irmãos originários.
Para superar essa realidade, a comunicação biocêntrica, baseada na cosmoconvivência dos povos entre si e com a Mãe Natureza, surge como horizonte que “não deve se ver como algo distante das práticas de comunicação educativa, alternativa e popular que se desenvolvem em nosso continente (tradução livre dos autores)” (Baspineros, 2015, p. 62). A partir das experiências já existentes “temos que recuperar suas utopias, suas abordagens, reconfigurações e programações, porque ali estão já batendo os corações da Comunicação para o Vivir Bien/Buen Vivir (tradução livre dos autores)” (Baspineros, 2015, p. 62).
No interior do cotidiano dos povos originários há um movimento intrinsecamente imbricado com a perspectiva do Vivir Bien/Buen Vivir, que preconiza a relação harmônica e o diálogo igualitário, sem qualquer relação hierárquica, de justaposição ou homogeneização das diferenças. E é dessas relações que se nutre a Interculturalidade Crítica que, para além de ser um conceito, é uma prática centenária, concreta, mas ainda restrita aos grupos populacionais originários e afro-latino-americanos.
A pesquisadora estadunidense naturalizada peruana, Catherine Walsh (2008), diz que Interculturalidade Crítica ainda não existe —em nível de região—, é algo por construir, e vai muito além do respeito, da tolerância e do reconhecimento da diversidade e, não se refere apenas às condições econômicas, “mas também para elas que têm a ver com a cosmologia da vida em geral, incluindo conhecimentos e saberes, memória ancestral, a relação com a Mãe Natureza e a espiritualidade, entre outros» (tradução livre dos autores) (Walsh, 2008, p. 140).
Nesse aspecto, Grimson (2011) elucida que a Interculturalidade não é algo novo na história da humanidade porque sempre houve contato entre configurações culturais diferentes. “Em vez disso, a história humana também é composta pela dinâmica, intensidade, valor e sentidos de trocas muitas vezes conflitantes. O termo “interculturalidade” é uma maneira relativamente nova de nomear um processo histórico” (tradução livre dos autores) (Grimson, 2011, p. 190), que se desenvolve a partir do contexto da América Latina.
Enquanto conceito que adquire cunho investigativo na região, não concebe as culturas como homogêneas e “permite revelar as múltiplas intersecções entre configurações culturais. O conceito de Interculturalidade é útil porque não pressupõe uma teleologia ou um modelo de ligação entre grupos” (tradução livre dos autores) (Grimson, 2011, p. 191). E por entender que na Interculturalidade os processos de comunicação e interação entre as culturas não estão desvinculados da história, pois os grupos sociais se constituem interagindo uns com outros no cotidiano.
Conforme Walsh (2008), há uma evidente necessidade de se praticar uma Interculturalidade nascida “a partir da luta dos povos subalternizados —indígenas, negros e sociedade em geral— e, assim, reorganizar as relações sociais e a própria sociedade a partir de seus modos de pensar e costumes, ou seja, sob a perspectiva de Abya-Yala” (tradução livre dos autores) (Walsh, 2012, p. 6). No contexto desses povos latino-americanos em que se busca a igualdade de direitos, respeito mútuo, paz e harmonia entre as diversas nacionalidades originárias, “a interculturalidade está emergindo como um paradigma e projeto social, político e epistemológico (tradução livre dos autores) (Walsh, 2012, p. 25), e se desenvolve como uma meta central de luta contra as hegemonias colonial e imperial dominante que nos assolam.
Logo, a Interculturalidade, enquanto processo do Vivir Bien/Buen Vivir, deve ser entendida como um propósito de sociedade, um projeto político, social, epistêmico e ético apontado para a transformação estrutural e sócio-histórica para provocar mudanças reais e efetivas nas instâncias social, política, educativa e humana. Esse seria o caminho a seguir para superar a geopolítica do saber e a colonialidade do poder eurocêntricas que concebem os povos indígenas e afro-latino-americanos sob preceitos racializados e, logo, discriminatórios.
teleSUR: La Voz Informativa de América Latina?
No contexto latino-americano, impera uma ordem comunicativa cujo objetivo é assegurar o exercício de poder político estadunidense, em detrimento da integração e autonomia regional que, historicamente está submetida à dominação cultural dos centros de poder, “na qual a comunicação desempenha um papel decisivo” (Beltrán e Cardona, 1982, p. 19). Essa assimetria de poder impede a realização dos anseios emancipatórios dos povos latino-americano. E o padrão das relações entre os Estados Unidos e a América Latina coloca em perigo “a integridade das culturas dos países desta região [...]. E a emancipação política e econômica de nossos povos continuará sendo uma utopia distante” (Beltrán e Cardona, 1982, p. 119).
Essa perspectiva de unidade cultural e cultura nacional, construída e veiculada pela televisão, oculta o sistemático processo de apagamento de outras culturas subalternizadas, influenciando diretamente na construção das identidades dos povos. Conforme esclarece Martín-Barbero (1997, p. 250), “a televisão desenvolverá ao máximo a tendência à absorção das diferenças. E falo de absorção porque é esta sua forma de negá-las: exibindo-as livres de tudo aquilo que as impregna de conflitividade”. Por suas características técnicas, a televisão otimizou o intercâmbio e as experiências das relações humanas e, na mesma medida, encarregou-se de construir ou reforçar determinadas hegemonias e silenciar vozes dissonantes, não permitindo que as contrariedades ganhassem/ganhem notoriedade para ameaçar o poder estabelecido. De acordo com Martín-Barbero (2015, p. 250), “nenhum outro meio de comunicação tinha permitido o acesso a tanta variedade de experiências humanas, de países, de povos, de situações. Mas também nenhum outro jamais as controlou de tal modo que, em vez de implodir o etnocentrismo, terminasse por reforçá-lo”.
Os conglomerados estrangeiros de comunicação que atuam na América Latina, principalmente estadunidenses (CNN, ABC, Univisión), retratam a região de forma parcial ou desfavorável sob vários aspectos (Oliveira, 2010), e constroem discursos uníssonos pró Estados Unidos, possibilitando o exercício do imperialismo cultural da potência do Norte sobre os países latinos. Com isso, os temas que ocupam as manchetes sobre a América Latina, feitas por óticas estadunidenses, reproduzem visões estereotipadas da região, enfatizando apenas aspectos negativos como golpes, agitações políticas, catástrofes e escândalos, produzindo “visões alheias e distorcidas de identidade cultural, negando aos latino-americanos a participação em sua própria história e prejudicando os esforços de integração de seus povos” (Ferreira, 1995, p. 28).
Assim, a forma como nos relacionamos entre nós e com a natureza é o que esculpe nosso caráter identitário. Expressamos através dos corpos e ações cotidianas as identidades que nos conformam, e que vão para além da superficialidade dos estereótipos que fundamentam preconceitos e discriminações. As nossas Identidades Culturais constituem a essência do que somos no material, no físico e, principalmente, no simbólico, considerando que a ancestralidade e a imaterialidade são os componentes mais profundos que nos afirmam como agentes.
Para o sociólogo jamaicano-britânico, Stuart Hall (2006, p. 8), as identidades culturais são “aspectos de nossas identidades que surgem de nosso “pertencimento” a culturas étnicas, raciais, linguísticas, religiosas e, acima de tudo, nacionais”. Logo, são referências que construímos cotidianamente, e quando isso é abordado e veiculado pelos meios de comunicação sob um prisma limitado, estigmatizado e preconceituoso, influencia diretamente no sentimento de pertença que desenvolvemos como nossos territórios epistêmico-político.
Ainda conforme o autor, não nascemos como nossas identidades, elas “são formadas e transformadas no interior da representação” (Hall, 2006, p. 48). Logo, são adquiridas ao longa vida em um constante processo de construção social. Desde essa ótica, nenhuma pessoa nasce latino-americana —e todas as implicações que carrega—, torna-se.
Os estigmas a que no referimos são reforçados pela ordem comunicativa de dominação hegemônica, criados pelos centros de poder e operados pela mídia estrangeira e pelas mídias no âmbito local dos países, que importam os discursos dominantes e os disseminam no interior dos países latino-americanos. Para viabilizar uma ruptura possível a esse processo, surgiram movimentos e instituições político-culturais paradigmáticas que se encarregaram de criar uma nova narrativa na e sobre a América Latina, como é o caso da emissora de TV multiestatal, Televisión del Sur (teleSUR). A teleSUR foi inaugurada no dia 24 de julho de 2005, data do aniversário de Simon Bolívar, e se propõe a construir uma visão latino-americana da realidade, contrapondo-se ao relato jornalístico hegemônico das empresas de comunicação que replicam a visão de continente gerada a partir dos Estados Unidos e/ou Europa, e promover a “integração das nações e povos da América Latina e Caribe” (Nogueira, 2012, p. 88).
O caráter multiestatal da emissora decorre da dinâmica de sua criação, que teve como Estados-membros fundadores: Venezuela (70%), Argentina (20%) e Uruguai (10%). Até 2016 a sociedade da TV era composta por Venezuela, que detinha 51%, Cuba participa com 15%, Argentina com 14%, Uruguai, Bolívia, Equador e Nicarágua, com 5% cada (Moraes, 2015). Após a eleição do presidente Maurício Macri na Argentina em 2016, o país se retirou do projeto comunicacional. Em 2018, foi a vez do Equador deixar a rede de comunicação. Moraes (2015) destaca que, nas produções jornalísticas da teleSUR, é possível notar a existência de pluralidade social. A heterogeneidade presente na América Latina reverbera na programação da multiestatal. A autora destaca alguns dos atores sociais quem têm suas vozes veiculadas.
Defensores dos direitos humanos, movimentos sociais em favor das mulheres e dos homossexuais, grupos economicamente desfavorecidos, trabalhadores urbano-industriais e do campo são alguns dos sujeitos concretos e teóricos cujas vozes ecoam nas matérias, atestando o compromisso da emissora latino-americana com a diversidade social, apontada pela Unesco (2001) como um critério fundamental na definição de um meio de comunicação público. (Moraes, 2015, p. 260)
Para realizar esse tipo de cobertura diferenciada, privilegiando temáticas e vozes negligenciadas e excluídas, Moraes (2015) explica que a teleSUR “dispõe de uma estrutura de produção jornalística própria, que disputa a significação dos acontecimentos mundiais, especialmente daqueles que têm como palco a América Latina” (Moraes, 2015, p. 165), com os meios privados, alguns transnacionais que dominam o noticiário regional.
A teleSUR possui correspondentes nos Estados Unidos, Cuba, México, Nicarágua, Haiti, Colômbia, Bolívia, Equador, Peru, Argentina, Brasil e Síria (Moraes, 2015). Sua transmissão é realizada através de “redes de televisão comunitárias e privadas do Brasil, Cuba, Colômbia, Argentina e Uruguai, dentre outros países da América Latina” (Nogueira, 2009, p. 9), características que colaboram para a produção de uma narrativa plural da realidade latino-americana. No dia 25 de julho de 2019, data em que completou 14 anos, a emissora inaugurou a divisão de notícias em português, transmitida desde Caracas.
Nogueira explica que na conjunta política da Venezuela, na era Chávez e, consequentemente, levada adiante por Nicolás Maduro, os meios de comunicação “passam a ocupar uma posição central em um jogo político no qual parte dos diálogos entre os países ocorre pela imprensa tendo em vista a formação de opinião pública diante das questões levantadas” (2009, p. 10). O próprio Chávez, conforme Nogueira (٢٠٠٩, p. 10), admitia que no país “o jogo político passou a se confundir com o que se convencionou chamar de jogo midiático, ocorrendo disputas por legitimidade dos diversos discursos veiculados”. Cañizález e Lugo (٢٠٠٧) destacam a função da teleSUR desempenhada junto ao governo chavista. Para eles, a “Telesur tem sido desde o princípio um projeto político do governo de Hugo Chávez com o propósito de conquistar presença internacional e projeção geopolítica (tradução livre dos autores)” (Cañizález e Lugo, 2007, p. 19).
Chávez buscou utilizar o poder de alcance e influência da mídia para divulgar seu projeto de governo para além das fronteiras venezuelanas e idealizar uma esfera pública tendo como lócus a América Latina. Para Nogueira (٢٠٠٩, p.٩), “o domínio dos meios de comunicação parece ocupar um papel central na estratégia política adotada pelo presidente venezuelano Hugo Chávez [e Nicolás Maduro], para quem o jogo político mundial, hoje, se confunde com o jogo midiático”. Incialmente, a teleSUR foi presidida pelo ministro de Comunicação e Informação da Venezuela, Andrés Izarra, fato que atribui à emissora um caráter governista. Chávez idealizou a rede midiática como uma estratégia comunicacional com vistas a construir uma zona de influência dos ideais bolivarianos. Além disso, a TV proporciona ao país sul-americano a possibilidade se projetar geopoliticamente no cenário global e, até mesmo, exercer a diplomacia pública venezuelana.
Metodologia: Análise do Norte Comunicativo da TeleSUR
Para a realização da análise da proposta comunicativa da teleSUR na América Latina, seguimos duas vertentes. Primeiramente foi analisado o site da emissora1 no qual é apresentada sua visão institucional e a grade de programas que foram e são exibidos ao longo dos 17 anos em que está no ar. Na segunda, analisamos três edições do teleSUR Notícias, principal telejornal da TV, recorte adotado para identificar como os discursos e as ideologias são operacionalizados pela emissora.
Na abordagem analítica, utilizamos a Análise de Discurso francesa que, em seu modo operativo, a partir de três “etapas de análise”, permite ao analista “passar do texto ao discurso, no contato com o corpus” (Orlandi, 2010, p. 77). Essas etapas, de acordo com Orlandi (2010) são: 1ª Etapa: Superfície Linguística (Texto); ٢ª Etapa: Objeto Discursivo (Formação Discursiva); ٣ª Etapa: Processo Discursivo (Formação Ideológica). O trabalho do analista é passar de uma etapa para outra até identificar a formação ideológica presente no material empírico que nesse caso é a teleSUR.
O índice do discurso —texto, imagem, som— é ponto de partida da análise que o considera “um objeto histórico. Histórico aí não tem o sentido de ser o texto um documento, mas discurso. Assim, melhor seria dizer: o texto é um objeto linguístico-histórico” (Orlandi, 2001, p. 53). É entendido dessa forma por resultar da relação humana com o mundo e carregar significados. Sendo assim, “o objetivo da AD é compreender como um texto funciona, como ele produz sentidos, sendo ele concebido enquanto objeto linguístico-histórico” (Orlandi, 2001, p. 56). Para isso, o caminho é percorrido é o da interpretação.
Ainda conforme idealiza a AD, texto e discurso são duas camadas distintas no processo comunicativo, que estão interconectadas, mas habitando dimensões diferentes das relações humanas. Enquanto o primeiro, de base material, equivale a um a “conjunto significante: designa um “pacote” de matérias significantes (linguísticas e outras), independentemente do modo de abordar sua análise” (Verón, 2004, p.61), o segundo refere ao simbólico e “implica um certo número de postulados, que fazem como que o texto não seja abordado de uma maneira qualquer” (Verón, 2004, p.61), mas sim, como um resultado de combinação de fatores de ordem subjetivas que não obedecem a uma regularidade determinada na sua constituição.
A Análise de Discurso de orientação francesa não concebe o discurso como mera transmissão de informação, tampouco segue a linearidade na disposição dos mecanismos da comunicação que sugere a mensagem como um instrumento de diálogo despretensioso, estruturado e mecânico, em que “alguém fala, refere alguma coisa, baseando-se em um código, e o receptor capta a mensagem, decodificando-a” (Orlandi, 2010, p. 21). E é partindo dessa compreensão que estruturamos a análise da proposta comunicativa da teleSUR pela lente do Buen Vivir/Vivir Bien.
Com programação de notícias 24h, transmitida simultaneamente pela TV, site e no Youtube, o canal latino aborda as diversas vertentes do cotidiano regional em uma grade que consta de 90 programas veiculados em espanhol e alguns em inglês e português. Os programas estão divididos nas seguintes categorias: Noticieros y programas informativos, Programas de análisis y entrevistas, Programas deportivos, Programas culturales e Programas temáticos. O site da TV hospeda o repositório de vídeos de toda programação, organizados nas sessões de Noticias, Entrevistas, Programas Documentales y Reportajes, Especiales y Series. Com essa grade, a cobertura da teleSUR busca abranger os mais distintos aspectos do cotidiano latino e dar visibilidade aos povos excluídos e silenciados da grande mídia.
Nesse espaço é reforçado que sua proposta comunicativa centra-se na construção de uma visão da América Latina para os latino-americanos; projeção de uma perspectiva de valorização dos aspectos regionais para o mundo; e, ao mesmo tempo, trazer um panorama do mundo para a região. Ao propor essa linha de atuação, a teleSUR indica a existência de falhas e critica o fazer comunicativo dos demais meios de comunicação, e se aponta como meio capaz de suprir essas demandas. Para ressaltar o papel que desempenha com foco a corrigir essas assimetrias midiáticas, a teleSUR afirma que “está presente nos grandes acontecimentos, não só na América Latina, mas em todo o mundo. Em nossos [dezessete] anos realizamos importantes coberturas que mostraram a verdade sobre os acontecimentos mundiais (tradução livre dos autores) (teleSur, 2019)”.2 Como notamos, a TV enfatiza a abrangência de sua atuação e parte da premissa que traz a “verdade” sobre os acontecimentos da América Latina e do Mundo.
No que diz respeito aos direcionamentos de atuação, informa que sua missão é ser “um multimeio de comunicação latino-americano de vocação social orientado a liderar e promover os processos de união dos povos do SUR. Somos um espaço e uma voz para a construção de uma nova ordem comunicacional (tradução dos autores) (teleSur, 2019)” . Aqui, sublinhamos que essa “nova ordem comunicacional”, está relacionada com a intenção da emissora de superar a ordem estabelecida pelas emissoras estadunidenses e as comandadas pelas elites locais.
Para confrontar essa hegemonia comunicativa, a emissora latina se apresenta com “um multimeio e multiplataforma de serviço público com cobertura global que, desde o SUR, produz e divulga conteúdo informativo e formativo para uma base de usuários ampla e leal; com uma visão integradora dos povos (tradução livre dos autores)” (teleSur, 2019).Conforme observamos, o SUR aparece como um dos elementos mais significativos da constituição político-comunicativa da TV.
Escrito com letras maiúsculas, esse SUR não diz respeito apenas à localização geográfica de onde enuncia a teleSUR, trata-se, de acordo com a própria emissora, de um “conceito geopolítico que promove a luta dos povos pela paz, autodeterminação, respeito pelos Direitos Humanos e a Justiça Social (tradução livre dos autores) (teleSur, 2019)”. Nessa definição está presente a perspectiva política construída por Simon Bolívar, a “Pátria Grande”, que propunha unificar em uma única nação as antigas colônias hispânicas e construir uma política de interdependência solidária, ancorada em relações cooperativas entre povos iguais em direitos e deveres (Moraes, 2015).
Bolívar defendia que as nações latino-americanas deveriam “adquirir feições próprias, em sintonia com a realidade regional” (Moraes, ٢٠١٥, p. 59). E é justamente dessa premissa que a teleSUR garante partir, ao realizar sua cobertura considerando as singularidades históricas e atuais do continente. Como projeto midiático que reúne países da América Latina, a TV propõe integrar os povos da região pelo viés comunicativo, com fins a efetivar essa ordem comunicativa ao SUR.
O reforço à postura política sulista está presente no slogan que a teleSUR adota: Nuestro Norte es el Sur. Frase que surgiu dentro do pensamento político-artístico de Joaquín Torres García, considerado o pintor uruguaio mais importante do século XX. Criador do quadro, “América Invertida”, Garcia propôs um movimento artístico latino-americano autônomo fundamentado nas tradições dos povos originários da região. A obra é também interpretada como um instrumento sociopolítico orientado a criticar e combater o imperialismo cultural estadunidense, a considerar que, no mapa do artista, não existe os Estados Unidos. E, desde nossa percepção, é nesse aspecto do “América Invertida”, que o projeto político da teleSUR está sustentado para projetar o SUR.
Resultados
Nessa ótica, entendemos que, mais que o SUR, relacionado à geografia sul-americana, trata-se do Sul político em âmbito global, crítico e que nega os Estados Unidos. Podemos interpretar essa postura como reflexo da relação entre a política venezuelana e estadunidense, bem como a relação imperialista do país nortista com as nações latino-americanas. Fatos que fazem com que a emissora se insira em um fluxo enunciativo já existente e, que, apesar de adotar uma lógica que julga diferente, tende a reforçar a estabelecida, em certo ponto para justificar seu ponto de partida.
Quanto ao produto telejornalístico, nossa análise considera três edições do jornal teleSUR Notícias, veiculadas nos dias 22, 23 e 24 de outubro de 2020, disponíveis no repositório de vídeos, respectivamente com as seguintes retrancas: El bloqueo impuesto por EE.UU. a Cuba causa pérdidas económicas; En Chile se realiza jornada de reflexión ante plebiscito; e MAS-IPSP celebra triunfo electoral en Bolivia. Esse recorte foi tomado por ser tratar de um período de significativas mudanças no contexto geopolítico regional.
Nesse breve recorte das chamadas das notícias já é possível identificar evidências discursivas e ideológicas da teleSUR, no que diz respeito à abordagem que faz sobre a América Latina. Os três países, Cuba, Chile e Bolívia, passam por momentos políticos de mudanças, mesmo que indiretamente, como é o caso de Cuba, que —na época da cobertura— observava interessada a campanha presidencial nos Estados Unidos, que tem impactos diretos no país caribenho. O Chile atravessava um momento de expectativa com a campanha para o plebiscito que propunha uma nova Assembleia Constituinte, para eliminar a constituição de 1980, herdada da ditadura de Augusto Pinochet. Na Bolívia era celebrada a vitória do Partido Movimento ao Socialismo, que retornava ao poder com Luis Arce e David Choquehuanca, um ano após o golpe de estado que destituiu o então presidente reeleito, Evo Morales.
A tomar pelos temas abordados pela TV, notamos que há uma predominância da temática política e que os Estados Unidos e os países da América Latina são os principais agentes enfocados no noticiário. Na disposição das notícias, tanto nas escaladas, quanto na íntegra das matérias há sempre na parte inferior da tela uma tarja preta ou azul com letras brancas escritas em maiúscula e, em alguns casos, negrito, reforçando os aspectos televisuais: áudios, imagens e sons. Ao final de cada edição, há notícias breves sobre esportes e culturas mundiais. Muitos dos temas são repetidos, alguns com enfoques diferentes. As edições dos dias 22 e 24 de outubro são apresentadas nos estúdios da teleSUR em Caracas (Venezuela) e a do dia 23 é veiculada de Havana (Cuba).
São destaques destas edições: a apresentação do relatório anual sobre os impactos do bloqueio econômico dos Estados Unidos contra Cuba, feita pelo Ministro de Relações Exteriores cubano, Bruno Rodríguez; o bloqueio econômico dos Estados Unidos aos cubanos, e que na pandemia as políticas restritivas foram recrudescidas. Os efeitos do bloqueio são caracterizados como genocídio, atentado contra os direitos humanos. do povo cubano e equiparados aos da pandemia do novo coronavírus. É feita uma referência ao processo eleitoral estadunidense, enfatizando que o bloqueio compõe os interesses eleitorais de Donald Trump, na Flórida, estado decisivo nas eleições, e que centraliza um significativo movimento político anticubano.
São noticiados os seguintes temas: o último debate presidencial nos Estados Unidos entre Joe Biden e Donald Trump; o plebiscito no Chile para definir se o país teria uma Assembleia Constituinte; as eleições presidenciais na Bolívia com perspectiva de “triunfo” de Luis Arce (presidente) e David Choquehuanca (Vice); a coletiva de imprensa de Evo Morales, na Argentina, em que faz críticas e pede a renúncia do Secretário Geral da Organização dos Estados Americanos (OEA), o uruguaio Luís Almagro (acusado de fazer um relatório tendencioso sobre as eleições de 2019, que resultou na renúncia do mandatário), e pede à comunidade internacional que respeite o resultado eleitoral do país; os protestos de indígenas e campesinos no Equador contra o acordo do governo Lenin Moreno com o Fundo Monetário Internacional (FMI); o debate do Senado colombiano sobre uma Moção de Censura contra o Ministro da Defesa, por trazer tropas estadunidenses ao país sem autorização dos senadores, como exige a constituição; o conflito entre Armênia e Azerbaijão, destacando, “más de 5 mil muertos en Nagorno Karabaj”. Nessa matéria, o Presidente russo Vladmir Putin recebe destaque como a principal autoridade que promoveu uma saída pacífica para o conflito. As falas e imagens de Putin foram extraídas de uma conferência que realizou para o Clube Internacional de Debates Valdái.
Há ainda destaques sobre um conflito familiar que envolveu o ex-ministro de Agroindústria do governo de Maurício Macri, Luís Miguel Etchevehere, que poderia resultar em ataques políticos contra o presidente Alberto Fernández; a possível renegociação das dívidas do governo argentino pelo Fundo Monetário Internacional (FMI), que pode vir a amenizar a crise herdada do governo de Macri; a suspensão dos trabalhos de combate aos incêndios florestais na Amazônia e Pantanal no Brasil pelo IBAMA; a realização, por parte da Comissão da Verdade colombiana, do sexto encontro pela verdade dos povos indígenas em situação e risco de extermínio naquele país; os milhares de filhos de imigrantes trabalhadores canavieiros na República Dominicana, que sofrem há sete anos as consequências de uma decisão do Tribunal Constitucional do país, que lhes retirou a nacionalidade dominicana; os mais de 50 milhões de cidadãos estadunidenses que votaram antecipadamente por correio e pessoalmente nas eleições presidenciais deste ano no país; as organizações que realizaram campanhas para que jovens negros e latinos não deixem de votar nas eleições estadunidenses; as mobilizações indígenas e atos políticos para celebrar a vitória de Luís Arce na Bolívia; a condenação ao papel de ingerência da OEA, fazendo referência à função da União de Nações Sul-americanas na região; a liberação, por parte da justiça chilena, de mais de mil policiais envolvidos em violações de direitos humanos durante os protestos de 2019; a infiltração de policiais chilenos em movimentos sociais com objetivo político de neutralizar os protestos através de delações para influenciar o plebiscito da nova Assembleia Constituinte; a extensão das medidas de isolamento por parte do presidente da Argentina, Alberto Fernández, para combater o avanço do novo coronavírus por mais duas semanas; o assassinato de outro jovem afro-americano por parte de policiais estadunidenses; o aumento das restrições para envio de dinheiro a Cuba por parte dos Estados Unidos; os protestos de movimentos sociais no Panamá contra a privatização da Seguridade Social em meio à pandemia.
O conjunto das notícias apresentadas mantém o tom crítico às políticas neoliberais, aos governos de direita e extrema-direita, em contraponto à mídia corporativa tradicional no continente. Há também uma crítica constante e direta aos Estados Unidos. Nas notícias sobre Cuba, criticam por conta do bloqueio econômico imposto em 1962, que asfixia até hoje a população do país. No caso do Chile, pelo alinhamento submisso e irrestrito à política externa e econômica estadunidense. Na Bolívia, pelo envolvimento do país nortista no golpe de estado que depôs Evo Morales em 2019, por meio da Organização dos Estados Americanos (OEA), que denunciava supostas fraudes eleitorais em benefício de Morales. O que foi refutado com a vitória de Luis Arce com mais de 55% dos votos. O telejornalismo da teleSUR também enaltece autoridades políticas de fora do eixo Europa-Estados Unidos, como Alberto Fernández, Evo Morales (e agora Luis Arce) e Vladimir Putin que, apesar de ser um país também localizado na Europa, tem uma postura ríspida com os vizinhos europeus, e mantém intensas relações diplomáticas e comerciais com a Venezuela, principal mantenedor da emissora de TV.
Conclusões
Nossa análise é feita a partir de um recorte que indicia um padrão jornalístico, mas, sem qualquer pretensão de responder pela totalidade comunicativa da teleSUR. A proposta comunicativa da emissora está delineada de acordo com a sua condição institucional de atrelamento aos governos de esquerda da América Latina. Enquanto multiestatal, ressona os anseios políticos dessas nações que, historicamente, são retratadas com menosprezo pela mídia que aborda a região a partir dos Estados Unidos. Quando se trata dos países não alinhados com a emissora, a abordagem ganha tom de criticidade. Considerando os países que foram e os que são membros da sociedade que compõem a Televisión del Sur, todos, durante a experiência de governos de esquerda, adotaram postura crítica à política estadunidense.
Enquanto reflexo comunicativo do momento político desses governos, a emissora endossa essa conjuntura, atuando em certa medida como seu porta-voz. Ao mesmo tempo, constrói uma televisualidade em que os latinos são protagonistas. Os povos originários, excluídos e invisibilizados da mídia, aparecem com grande frequência. Seus “lugares sociais de existência” são enfatizados desde uma abordagem de valorização e seus modos de vida são exibidos como exemplo de cultura emancipada. O fazer comunicacional da emissora se aproxima da teorização do Buen Vivir/Vivir Bien, quando propõe amplificar as vozes dos latino-americanos, visibilizar as culturas subalternizadas e as diferentes sociedades da região, priorizando as excluídas do sistema vigente e também dos meios midiáticos tradicionais. Essas características revelam, além do determinante político-estatal, a vocação popular da emissora que busca reforçar a construção das identidades latino-sulistas, que não está livre de contradições.
Aqui, evidenciamos o fato de que a postura da teleSUR contribui para acentuar o binarismo geográfico Norte/Sul, quando nega o Norte e acentua a posição sulista. Esse é um enunciado já posto e que, ao não ser problematizado com a devida profundidade, deixa de afetar o problema principal, que é a configuração estrutural de Sul como uma determinação de poder. No momento em que a esquerda perde força na América Latina, e a direita retorna ao poder, a TV articula e reforça seu discurso para enfatizar os projetos e os legados das experiências esquerdistas na região, que se encontram sob ameaças. Países que lograram eleger políticos de esquerdas sofreram e sofrem duras investidas e derrotas para a direita, seja nas urnas ou por meio de golpes, como nos casos de Honduras (٢٠٠٩), Paraguai (٢٠١٢), Brasil (٢٠١٦) e Bolívia (٢٠١٩).
Todos esses fatos repercutem na cobertura da teleSUR a partir de uma visão regional. Enquanto as cadeias de televisão estadunidenses tratam da América Latina desde seu território ao norte, a teleSUR constrói sua cobertura in loco, apreendendo as singularidades dos fatos sob a ótica dos afetados. Entretanto, entendemos que a estética dos programas da Telesur ainda padece de certo distanciamento da perspectiva do Buen Vivir/Vivir Bien, considerando que não basta apenas “dar voz” ou espaço para os grupos alijados da mídia tradicional apareceram, mas sim, permitir que o fazer comunicativo desses povos esteja na grade da emissora.
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